
A nova morada: um parque de estacionamento
Num canto de Setúbal, junto ao Parque Urbano de Albarquel, repousa discretamente uma carrinha branca. Aos olhos de quem passa, nada a distingue das restantes, mas lá dentro vive Pedro (nome fictício), 38 anos, com o que descreve como "um lar sobre rodas". Tem uma cama estreita mas limpa, um fogão a gás de campismo, painéis solares colados ao tejadilho e um hotspot 4G que lhe garante ligação ao mundo. Há quem passe por ali todos os dias e nem imagine que aquela viatura, aparentemente inócua, é a única coisa que separa Pedro de uma situação de total desamparo.
Pedro não é um sem-abrigo, mas é, segundo os parâmetros legais actuais, um residente sem morada oficial. Trabalha como estafeta para uma plataforma de entregas em Almada, onde viveu durante quatro anos. Mas em 2023, o senhorio recusou renovar-lhe o contrato, preferindo colocar o apartamento em regime de alojamento local. "Tentava candidatar-me a novos arrendamentos, mas pediam 1200 euros por um T1. Eu ganho 980 em meses bons...", desabafa. "Cheguei a dormir no carro durante duas semanas, até perceber que podia tentar algo mais estável, mesmo que fora das normas."
A situação de Pedro não é isolada. Dados recolhidos pela organização Habitat Lisboa indicam que, em 2024, pelo menos 2.000 pessoas vivem em viaturas adaptadas, entre carrinhas, roulottes e autocaravanas, em todo o território nacional. Estes não são casos de turismo nómada, mas de sobrevivência urbana. O número poderá ser bastante superior, já que não há registo oficial centralizado. A plataforma "VanLife PT" no Telegram, por exemplo, tem crescido exponencialmente, reunindo mais de 12.000 utilizadores em Maio de 2024. Segundo um inquérito interno promovido por esse grupo, cerca de 37% dos membros vivem permanentemente nos seus veículos e não o fazem por escolha, mas por necessidade.
Na Ericeira, encontramos Maria e Tiago, um casal de trintão com um filho pequeno que transformou uma carrinha Mercedes Sprinter num "mini T0". Têm casa de banho seca, frigorífico a energia solar e água aquecida com um sistema rudimentar. "Pagávamos 950 euros por um apartamento minúsculo com infiltrações. Quando a renda subiu para 1250, saímos. Preferimos viver livres, mesmo que na estrada." Ambos trabalham em regime remoto, ela como ilustradora e ele como programador. Confessam que, ao início, sentiram vergonha. “O nosso filho, o Diogo, até gostava da aventura. Mas o que me doía era explicar aos meus pais que estávamos a viver ‘em quatro rodas’.”, diz Maria.
Nem todos os casos são de famílias jovens ou profissionais digitais. Em Viana do Alentejo, João Ferreira, reformado de 67 anos, vive sozinho numa roulotte desde 2022. Depois de um divórcio e de anos a viver em quartos arrendados, decidiu investir os últimos 4.000 euros que tinha numa roulotte de segunda mão. “Pelo menos aqui não me correm à porta ao fim do mês.” João estaciona junto ao campo de futebol local, onde é tolerado pela comunidade e até já ajuda a cuidar do recinto. “Levo o lixo dos outros e limpo à volta. Ninguém me chateia e eu também não incomodo.”
Em zonas como Faro, Coimbra, Alverca ou Aveiro, é cada vez mais comum ver viaturas permanentemente estacionadas em parques junto a supermercados, zonas industriais ou praias. Castro Marim e Vila Velha de Ródão surgem como refúgios para nómadas modernos em busca de sossego e tolerância local. Em Aljezur, a autarquia já realizou reuniões comunitárias sobre a presença de habitações móveis em terrenos agrícolas, discutindo com os moradores locais formas de convivência segura e limpa. Em Lagos, o vereador Miguel Costa afirmou recentemente, numa sessão pública, que “ignorar esta realidade é negligenciar uma franja crescente da população ativa que não encontra resposta no mercado de arrendamento”.
De acordo com o Observatório Nacional da Habitação, o preço médio de arrendamento em Lisboa subiu 38% entre 2021 e 2023. Este agravamento levou a um fenómeno silencioso: pessoas com emprego e rendimento fixo a optarem por soluções até há pouco tempo associadas ao turismo de aventura ou à precariedade extrema. Um estudo publicado pela Fundação Francisco Manuel dos Santos, em colaboração com o ISCTE, indicou que 19% dos jovens adultos entre os 25 e os 34 anos que vivem fora de casa dos pais estão em situação de “habitação instável”, categoria onde se incluem estadias temporárias em veículos.
Este novo modo de habitar, embora em crescimento, continua invisível para as estatísticas oficiais. Ainda assim, começa a ser notado por movimentos cívicos e iniciativas locais como o projecto "Habitar com Dignidade", promovido pela associação Renovar a Mouraria, que em 2024 lançou um estudo qualitativo sobre habitação informal na Grande Lisboa, incluindo casos em viaturas transformadas. O relatório destaca ainda a ausência de legislação específica, a dificuldade de acesso à saúde, à educação infantil e até à segurança social por falta de comprovativo de residência.
Em entrevista à Deep Report News, a socióloga Helena Matos sublinha: “Estas pessoas vivem dentro da legalidade, mas fora do radar institucional. É uma realidade invisível que compromete os princípios de equidade do nosso Estado social.” A investigadora alerta ainda para a estigmatização crescente destas populações: “Quando se estaciona uma roulotte num bairro residencial, muitas vezes os vizinhos assumem que é um grupo de delinquentes ou toxicodependentes. Isso revela o quanto ainda precisamos de educar a sociedade sobre a diversidade de experiências de vida.”
Os autarcas, pressionados entre queixas de moradores e a falta de alternativas, têm agido de forma desigual. Em Torres Vedras, foi criado um parque experimental para veículos habitacionais com acesso a água, luz e casas de banho públicas, que já acolhe mais de 30 pessoas. No entanto, a maioria das câmaras ainda reage com notificações, multas ou reboques. A ausência de um enquadramento nacional leva a uma grande disparidade de tratamentos consoante o município.
Para Pedro, Maria, João e tantos outros, viver numa carrinha é uma resposta concreta a um problema real: a impossibilidade de garantir um tecto sem cair na dívida, no desespero ou na marginalidade. E enquanto o país hesita entre reconhecer ou ignorar estas “casas com rodas”, a vida continua, silenciosa e resiliente, nos parques de estacionamento do quotidiano português.